Era uma vez um cão que passou a maior parte de sua vida vivendo com donos agressivos e pouco carinhosos. Esse cão não podia entrar em casa sem pedir permissão aos donos, não podia chegar perto sem antes perceber algum sinal de aprovação em sua aproximação. Ele estava acostumado a isso, e tinha como hábito de sobrevivência ser um cão cauteloso e humilde. Aprendeu a custa de muitas chineladas e chutes no rabo que não poderia expressar seus instintos mais básicos: pular em cima de seus donos, latir pedindo atenção, balançar o rabo como sinal de contentamento... todos esses comportamentos deveriam ser submetidos a controle interno rígido do pobre cãozinho, caso contrário, uma bela surra sobreria para ele.
Depois de longo tempo levando essa "vida de cão", o cãozinho já não se expressava naturalmente: ele era um cão domesticado, que vivia em função das vontades e humores de seus donos. Também já não havia o desejo legítimo de fugir, de correr pela rua. Mesmo com o portão aberto, o cãozinho já não fugia. Ele tinha medo. Não sabia do quê, mas sentia muito medo. Preferia viver com donos "não tão legais" a se aventurar nequela rua movimentada e cheia de perigos.
Um belo dia, sem entender as razões, o cão foi colocado dentro do carro por seu dono. Ele estranhou, aquilo nunca tinha acontecido. Seria um passeio? Não. Depois de muito tempo dentro do carro em movimento, uma freiada brusca o leva à percepção do que realmente estava acontecendo: o cão foi abandonado em um local desconhecido e distante, de onde não saberia voltar.
O que ele tinha feito de errado? Não teria sido obediente o suficiente? Não teria conseguido entender plenamente os desejos de seus donos e respondido a esses? Não havia respostas para suas inquietações. O cão passa então a vagar pela rua, na companhia de outros cães, vivendo os perigos dos carros em alta velocidade, passando fome e frio, sentido falta de um afago na cabeça (algo que tinha sido raro em sua vida, mas que lhe dava grande contentamento), sendo chutado para longe por pessoas desconhecidas, sem nenhum motivo aparente.
Certo dia, andando cabisbaixo por uma rua, o cão percebeu que alguém assobiava. Era um menino, de aproximadamente 12 anos, que acenava e tentava chamar a atenção do cãozinho. Mesmo desconhecendo o menino e sentindo-se um pouco desconfiado, o cão se aproximou. O menino logo foi lhe fazendo carinho. Era perceptível seu olhar de alegria mesclado a pedidos eufóricos: Mãe, posso ficar com ele? Por favor! Vamos levá-lo, ele gostou de mim. Você prometeu que ia deixar eu ter um cachorro...
O cãozinho observa aquela cena sem entender nada, mesmo assim acompanha o menino pela rua, rumo a um novo lar. Chegando em casa, seus novos donos lhe providenciam um colchonete velho, que servirá como cama no cantinho da varanda. Além disso ganhou um cobertor que, mesmo com alguns buracos, o aqueceria do frio e da solidão. Uma refeição quente chegou em seguida, acompanhada de afagos, risos, brincadeiras e muito amor.
Aquilo parecia um sonho. Nosso cãozinho jamais imaginou esse mundo de felicidade, nem mesmo em seus sonhos havia algo tão colorido e com tanto amor. Mas... e se esse amor acabasse? E se ele acordasse deste sonho? E se, como já acontecera uma vez, ele fosse colocado dentro de um carro e abandonado em uma rua distante? É possível perceber um olhar de aflição no cão. Ele teme, sente-se angustiado, algo de errado pode acontecer a qualquer momento.
Com todos esses temores, o cãozinho passa a ficar o tempo todo temeroso. Teme contrariar seus novos donos, teme ser mandado embora, teme não agradar o suficiente. Passa a não mais entrar na casa com medo de sujar o chão; sente necessidade entender o que os donos querem e tentar agradá-los; passa a não mais pular em seus donos quando estes chegam da rua, afinal ele podem não gostar desse comportamento; começa a não balançar o rabinho com tanto entusiasmo, talvez eles não gostem de cães tão eufóricos; é melhor não latir nem perseguir gatos, isso pode irrita-los... todos os comportamentos do cão é controlado por seu temor de ser abandonado.
E aos poucos, apático e triste, o cão vai ser tornando cada vez menos presente naquela família, cada vez menos participativo na vida daquela criança. O tempo passa e o menino cresce. Agora seus interesses são outros, agora não há tempo para um cão tão tristonho. Agora não há espaço para um cão quase inexistente. O dinheiro está curto, o tempo também, talvez seja melhor abandonar esse cão para que outra família, com mais condições e tempo possa cuidar dele. E novamente o cão entra no carro rumo a uma rua distante, de onde ele não sabe voltar.
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